Eleição na Argentina é batalha central pelo futuro da democracia e do mundo multipolar
Sergio Massa alinha-se com valores democráticos enquanto Javier Milei associa-se ao negacionismo do terror de Estado
Passada uma semana da surpreendente virada ocorrida no primeiro turno das eleições argentinas, a conclusão comum a quase todos os analistas é que a disputa entre os dois candidatos a presidente, Sérgio Massa, da peronista União pela Pátria, e Javier Milei, de A Liberdade Avança, está indefinida.
Impossível arriscar prognósticos seguros num segundo turno passível de reproduzir resultados muito apertadas como as que ocorreram nas eleições presidenciais no Brasil e mais recentemente no Equador.
Se é verdade que a escolha dos 35,3 milhões de eleitores deve se dar primordialmente em função da percepção sobre qual candidato apresenta mais capacidade para enfrentar os graves problemas internos que afetam a vida dos argentinos, como a inflação, a desvalorização do peso e a pobreza, não se pode subestimar a importância extraordinária do que está em jogo no plano da consolidação da democracia em país tão emblemático e, além disso, da afirmação da caminhada em direção a um mundo multipolar no plano da geopolítica internacional.
Em harmonia com a tradição peronista das últimas décadas, a candidatura de Sergio Massa alinha-se com o que houve de melhor na administração anterior, o respeito a valores democráticos e o compromisso com a memória, a verdade e a justiça que fazem da Argentina um exemplo no tratamento do legado de graves violações de direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar (1976-83)
Javier Milei, ao contrário, em especial por sua candidata a vice-presidente, a advogada e deputada Victoria Villaruel, associa-se ao negacionismo do terror de Estado que vitimou 30 mil opositores naqueles anos, inclusive com o sequestro de filhos de presos cujos bebês foram retirados de seus pais e entregues a terceiros. Algumas dessas vitimas estão ainda sendo descobertas até hoje. Villaruel ademais também rechaça explicitamente a existência de desigualdade de gênero e descarta o reconhecimento dos direitos dos povos originários.
Não é por acaso que Milei acolhe o apoio sinistro de Jair Bolsonaro e família. No cenário afunilado do segundo turno, estas eleições agregam, portanto, teor de transcendente plebiscito sobre a democracia como valor primordial. Quatro décadas depois a democracia está em questão.
A disputa no vizinho reflete-se sobre o Brasil num paralelismo notável poucas vezes tão nítido. O resultado pode reforçar a nossa democracia. Pode desgastar valores e compromissos construídos em mútua influência dos dois lados da fronteira. Terá influência importante na disputa de interna ao Brasil com o fascismo. O presidente Lula tem dedicado a isso toda atenção.
Como se não bastasse, a eleição na Argentina vai impactar diretamente as chances de construção de uma nova ordem internacional na qual tanto Brasil como Argentina estão cada vez mais envolvidos. Movimentando situação secular de sujeição, interessa aqui acelerar a debacle da dominância exclusiva dos Estados Unidos e abrir a governança internacional a uma multiplicidade de atores, com maior paridade de poder e influência entre eles.
Massa advoga o reforço à presença argentina no Mercosul e sua recente admissão nos Brics, instâncias cada vez mais simbólicas da nova ordem multipolar. A Argentina, aliás, acaba de obter, um socorro chinês para dispor de instrumentos monetários para atenuar a queda do peso e fazer frente a pagamentos sufocantes junto ao Fundo Monetário Internacional.
Milei descarta relações com os Brics e o Mercosul, bem como aquelas com a China e o Brasil, estes últimos por serem considerados em conjunto países "comunistas".
Apesar de se apresentar como novidade, a candidatura do ultraliberal Milei expressa um indisfarçável saudosismo reacionário em relação à chamada pax americana, esta mesma que está em processo, delicado e perigoso, de superação. A vitória de Massa implicaria, ao contrário, o revigoramento de um eixo ao sul da América, impossível de ser desconhecido, fundamento material e simbólico de que um novo mundo não só é viável como já está aí, revestindo o pleito argentino de importância multiplamente inestimável.